segunda-feira, 15 de outubro de 2012

Coerência é para Fóssil - Hilda Lucas - LOLA Ag/2012


"Tenho preguiça das pessoas cheias de certezas inabaláveis, verdades inquestionáveis e convicções imexíveis. Houve uma época em que as invejei: tão seguras e opinativas. Hoje, elas me espantam...
Tenho preguiça das pessoas cheias de gêneros, modelitos e atitudes midiáticas. Houve uma época em que fui como elas: Datada! Hoje, elas me entediam... É isso, quanto mais pertencemos a um tempo ou grupo, mais espelho dele somos, mais produto somos. Meros reflexos, e com o tempo desbotamos ou ficamos obsoletos.
A vida é muito curta para ficarmos encastelados em dogmas, entrincheirados em ideologias, congelados em estilos de vida, opinião e padrões. Inferno, para gregos, é a eterna repetição, a impossibilidade de transformação e mudança. Somos livres, curiosos e ousados, senão não evoluiríamos; temos vocação para novo, somos inconstantes. Não podemos ser sempre coerentes.
Claro que temos princípios mestres, raízes profundas, afetos verdadeiros e áreas nobres que tendemos a respeitar e são grandes catalisadores das escolhas que fazemos. Claro que temos uma espinha dorsal, que nos dá norte e referência, mas temos também inquietude e intuição, coragem e desejos. Estamos em movimento. Não somos fósseis!
Somos as tais metamorfoses ambulantes, ensaios, eternos rascunhos, obras inacabadas. Sendo, somos. Criaturas de nós mesmo, em fazedora, em confecção, em ebulição.
Somos muitos, para sermos nós mesmos. E esses muitos, todos esses outros-nós que coexistem, querem anseiam, comovem-se e gostam de coisas diferentes, distintas, cada uma a seu tempo e hora, ou mesmo simultaneamente.
Não se cobre coerência. Como diria Woody Allen, coerência é o fantasma das mentes pequenas. Exija-se. Isso sim, experimentação, idas e vindas, mergulhos, voos, incursões. Tente, acerte, erre, veja, reveja, ou não volte nunca mais. Encontre-se, perca-se, procure mais uma vez, desista, depois desista de desistir, desdiga-se, recomece. Sua cabeça é imensa e não é um troféu que você empalha e pendura na parede, vencido.
Em nós, cabe tudo. O concerto clássico, o bolerão, a música Techno. O shopping, o culto, a biblioteca, o mapa astral, o doutorado. Qualquer tipo de arte, desde que nos comova. Qualquer tipo de arte, desde que nos comova. Qualquer conversa, desde que haja troca. Qualquer tribo, trupe, trip ou tropeço desde que nos estimule, minimamente. Qualquer canto, palavra ou conto, desde que nos traduza. Pois tudo vale a pena para nossas almas não pequenas. Vamos alternando nossos humores, bandeiras e fases, porque queremos estar confortáveis dentro das nossas peles, e dentro das nossas peles somos fluidos, maleáveis e múltiplos.
A história do pensamento humano não fala de outra coisa: somos coerentes e incoerentes – uma hora isso, outra hora aquilo, um pouco disso, um pouco daquilo, isso e aquilo, não apenas, ou isso ou aquilo. Ser ou não ser. Ser e não ser. Pensamento é movimento.
A paixão é da ordem da incoerência; o amor, da coerência. A aventura e a imaginação são incoerentes; enquanto a rotina e a segurança são coerentes. O perdão é incoerente, e o ressentimento, coerente. Patrulhamento, crítica e cobrança são armas da coerência; liberdade e autonomia são frutos da incoerência. Incoerentes são a espiritualidade, a ciência e a arte; coerentes, as igrejas, os tratados e as leis. A educação é coerente; a evolução, incoerente. A morte é coerente, a vida, absurdamente, incoerente.
Outro dia me perguntaram: Você acredita em Deus?. “Depende”, respondi. Tem dias que sim. Tem dias que não. Tem dias que Ele acredita mais em mim do que eu Nele. Tem dias que Ele não sobrevive à segunda pergunta; tem dias que só o mistério é resposta. Tem dias Darwin; tem dias Agostinho. Tem dias que só Freud; tem dias cânticos. Tem dias que eu me desespero, lúcida e sozinha. Tem dias que eu rezo para dormir, tem dias que só Dormonid. Tem dias que eu estou inteira, convicta. Incoerentemente, inteira e convicta!
Pelo Dicionário Houaiss:
Coerência: s.f. uniformidade no proceder, igualdade de ânimo.
Fóssil: s.m. que ou o que perdeu a vitalidade ou a capacidade de crescer ou se desenvolver, espécie que permaneceu essencialmente inalterada.
Conclusão: coerência é para fóssil!" - Por Hilda Lucas

terça-feira, 9 de outubro de 2012

Escritos Impublicados - Garota 23


 Ela sentava na penúltima cadeira da última fileira, perto da janela. Todo dia era igual... Uma das primeiras a chegar, colocava a mochila cuidadosamente equilibrada no encosto da cadeira e a empurrava até quase encostar na janela, abrindo-a num ângulo exato que permitia a vista de um único pedaço imperfeito de céu azul, sentava e suspirava tirando uma caderneta ou um livro de dentro da mochila, só largando-os quando o último sinal batia e ia para casa.

Fim do dia.
Um novo dia.

A rotina se repetia sempre, os funcionários já a conheciam de longa data; haviam percebido sua diferença desde o primeiro dia que colocara os pés ali... A garota quietinha que ninguém mais lembrava o nome... Ela havia dito com certeza e devia estar escrito nos diários escolares, mas para todos era só a vinte e três... Como eles sabiam? Hum... Creio que é por que os professores tinham de repeti-lo muitas vezes para a garota que sentava na penúltima carteira da última fileira respondesse, não era a toa que todos comentavam que ela vivia em algum outro mundo.

Bate o sinal.
Pega a mochila.
Vai embora.
Volta para a aula.

Ninguém falava com ela, ela não falava com ninguém... Na verdade, nem sabiam se ela realmente existia... Os mais novos acreditavam que era que nem a loira do banheiro... Abriam-se todas as torneiras, sentavam no chão do banheiro com papel higiênico no nariz e repetiam-se vinte e três vezes o número vinte e três. Funcionava melhor se vinte e três pessoas fizessem isso ao mesmo tempo as nove e vinte e três.

Loira do banheiro.
O homem do chuveiro.
A Múmia da Freira Assassina.
A Professora Morta-Viva.

Os veteranos a consideravam invisível, ou ainda a viam como a guria de tranças que chegara atrasada no primeiro dia de aula da quinta série, e todos riram quando errou o chute, mas acertou o sapato... Sabem? Aquelas criaturas que nunca ficam famosas, populares...? Que nunca conhecem ninguém fora da própria turma? Aquela que senta no fundo e que os garotos zoam por não ter ninguém? Aquela criaturinha pequena e de cabeça baixa com os cabelos tampando os olhos que ao ser chamada lá na frente ficou vermelha, gaguejou, esqueceu o texto e todos riram? Aquela que não desce quando o sinal toca e sua voz é tão pouca que lembra o vento sussurrando pelas persianas semi-destruídas da sala de aula.

Diretoria.
Reitoria.
Feitoria.
Torturaria?

Outro dia a mais... Um igual ao outro, a mesma coisa sempre... Ninguém prestou atenção, mas ela não tirou nada da mochila, não olhou seu canto de céu nem mesmo aproximou a cadeira da parede. Ninguém percebeu... Estranharam, ela fora chamada a diretoria... Lembraram, ela da educação física sempre fugiria... Riram, ela voltou com a cabeça mais baixa ainda... Gargalharam, a professora também a bronqueara...

Calaram. 
Pra casa voltaram.
Se desligaram.

Não se sabe exatamente o que aconteceu... Ela não voltou no dia seguinte, para onde foi? – Vinte e três. - ? – Vinte e três... - ? – Vinte e três...! - ? – Vinte e três!!!! - ? – Vinte e três? – ninguém respondeu, a professora estranhando perguntou – Onde está a garota que senta na penúltima cadeira da última fileira? A vinte e três? – ninguém sabia responder, a professora que lecionava em mais de cinco escolas e tinham mais de quinze tempos naquele dia e uns tantos números vinte e três para se preocupar, nem ligou, deveria de estar doente... Mas uma pulga coçou na gola de sua camisa até a hora do intervalo...

Bicho papão.
Curupira, oh não...
Cuca que pega;
Velho do saco que leva.

Assim que o primeiro servente desceu e voltou assustado, a escola parou. Ninguém entendeu exatamente o que aconteceu, não tinha nada demais acontecendo para aquilo estar lá. Engoliram em seco, alguém deveria fazer alguma coisa ou pelo menos tirar aquilo dali... Os sinais bateram, bateram todos os que eram possíveis, mas ninguém saiu dali... Vinte e três... Talvez fosse a primeira vez que eles realmente a viram, talvez fosse a primeira vez que ela sorria... Engoliram novamente em seco sem conseguirem dizer nada...

Vento.
Tento.
Morte.
Norte.

A garota que senta na penúltima cadeira da última fileira, vinte e três, foi encontrada morta no pátio da escola. Suicídio, cortou os próprios pulsos nas grades que ficavam nos muros do colégio, lá no alto, com um sorriso maníaco, lembrando o Coringa do Batman em uma macabra paródia de cristo crucificado. Não tiraram o corpo ele ficou ali por muito tempo, tanto tempo...

Verdade.
Honestidade.
Covarde.
Coragem.

Não se sabe se isso é verdade ou só mais uma lenda urbana que se espalhou do e pelo colégio da Santa Cruz na rua Tal do Qual em uma cidade Que Ninguém Sabe, mas pode ser alguém que senta na penúltima cadeira da última fileira perto da janela da sua sala ou o número vinte e três que nunca desce na hora do intervalo, ou alguém que nunca fala com ninguém e cora quando é chamado lá na frente.

Escritos Impublicados - Bem-vindos ao meu mundo!


Nunca fui de escrever diários, na verdade nunca consegui escrevê-los. O meu dia-a-dia sempre me pareceu tão banal em si mesmo que não valia a pena relatá-lo, mas uma coisa sempre me apaixonou: brincar de criar histórias onde eu ou você pudéssemos ser qualquer um, herói ou vilão e com isso me apaixonei também pelas palavras, pela construção frasal rebuscada e sem nexo que borbulhava em minha língua como champanhe.
E, sem que percebe-se foram cadernos inteiros de poesias, contos, crônicas e histórias reais ou fantásticas, muitos deles incompletos... Outros tantos completos, que, porém, pareciam nunca estar completamente terminados. Hoje, anos depois que pela primeira vez rimei versos ou que criei personagens, junto a melhor parte de tudo que já escrevi e vejo o diário que nunca consegui concluir.
Cada conto ou poesia aqui revelado narra a trajetória da minha adolescência nem um  pouco distante, narra os problemas, rebeldias, modas, fases, pensamentos e a, ainda não contada, história dessa gente que teve de crescer na primeira década do século, que viu guerras tolas pela TV, vírus incontroláveis varrerem o mundo e teve que aprender a lidar consigo mesmo.
Nem todos de nós passamos pelos anos 2000 do mesmo jeito, mas acabamos sobrevivendo à ele e à nós mesmos; como toda geração nos surpreendemos com a chegada da liberdade e responsabilidade que a vida universitária acarreta, mas continuamos caminhando a fim de nos tornarmos adultos, tal qual o Pedro de um dos meus contos, e ficarmos obsoletos como os nossos pais. Afinal uma nova geração cresce por aqui e está criando suas próprias histórias, pena que só iremos reconhecê-las quando eles já tiverem passado.

Bem-vindos ao meu mundo.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Sobre como nunca escrevi diários...


Houve um tempo, quando os pré-adolescentes de hoje ainda não tinham nascido, que o Restart usava fraldas, coloridos ainda não eram moda e os emos ainda não tinham surgido que eu mesma fui uma pré-adolescente. E nessa época blogs estavam na moda, e, não, não falavam sobre moda, temas, assuntos sérios ou coisas do tipo... Eram simplesmente diários mesmo. Na internet. Com todo mundo lendo e comentando a vida pessoal dos outros. Sim, tive um desses e, não, não deu certo... Minha vida não é tão interessante assim. Logo depois surgiram os blogs de personagens, onde os nicknames iam muito mais longe, nasciam assim coveiros, bruxas, estrelas sombrias, góticos, roqueiros e muitos outros e com eles os escritores da internet. Sim, fiz parte de vários grupos desses, usei e critiquei gifs piscantes, fiz doll's, enjoei dessa moda, mudava templete todo mês, participava de fóruns e tudo mais.
Tudo mais... Mas a gente cresce, as modas mudam e hoje outra geração abre-se nesse mundo, bem mais politizada e debatedora do que aquela que buscava um escape pela internet, hoje nós podemos mudar o mundo. Então eu voltei.